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"O Monte Análogo" - René Daumal - horus editora
O MONTE ANÁLOGO - um conto

- 152 paginas - brochura - R$ 54,00
René Daumal
Com uma introdução de Kathleen Ferrick Rosenblatt
(leia um trecho)


O Monte Análogo de René Daumal é um clássico do século XX, combinando os dons poéticos do autor e sua habilidade filosófica de tal forma que se torna, ao mesmo tempo, agradável de ler e profundo para meditar.
Entre outras coisas, esta é uma alegoria da jornada da vida, bem como uma maravilhosa fábula em que o narrador/autor, um dentre um grupo de oito homens intrépidos que saem velejando no iate Impossible para procurar o monte Análogo, o sólido, geograficamente localizado (embora escondido) pico que ergue-se de maneira inexorável em direção ao céu – como o monte Olimpo erguia-se para o lar dos deuses gregos, ou o monte Sinai para a presença de Jeová. Daumal, um dos maiores escritores franceses do século XX, faleceu antes de completar a novela, proporcionando uma fantástica e única qualidade para a aventura.

“Um dos mais intrigantes sonhos poéticos da literatura contemporânea.”
- Robert Mallet, Le Figaro Littéraire

“Um conto maravilhoso... tão transparente e tão inesgotável como ‘O peregrino’ ou uma parábola do Novo Testamento.”
-Roger Shattuck

Desenho da capa: James Sarfati - NY
Ilustração: Natasha de Castro- NY

O Monte Análogo

Todas as mitologias falam, quer de um centro original do mundo, quer de uma árvore enraizada na terra e que alcança o céu, quer de uma montanha sagrada, de alguma maneira falam de uma possibilidade de comunicação com o além. Ora, é necessário que esta possibilidade exista, que a árvore ou a montanha esteja lá de verdade, da mesma forma que o monte Everest ou o monte Branco. É o que pensa o autor do conto, e por isso ele reúne uma expedição para descobrir o monte Análogo. A descrição dos membros da expedição permite a René Daumal exprimir a sua fantasia. A base da montanha é finalmente descoberta: é a curvatura do espaço que impede vê-la. O conto é inacabado, mas é certo que a expedição que desapareceu diante de nossos olhos de leitores continua a sua ascensão.

“Um dos mais intrigantes sonhos poéticos da literatura contemporânea.”
- Robert Mallet, Le Figaro Littéraire

René Daumal

René DaumalRené Daumal (1908-1944) foi um dos mais originais pensadores do século XX, poeta, filósofo e um vigoroso homem de visão. Publicou vários ensaios sobre religião e filosofia, bem como traduções do sânscrito. Foi editor da revista de poesia francesa Le Grand Jeu e recebeu o prêmio Jacques Doucet pelo seu primeiro livro de poesias Le Contre-Ciel. Morreu de tuberculose com a idade de 36 anos. Voltando-se para o ensinamento de Gurdjieff, Daumal encontrou um novo caminho para buscar a realização do ser interior que ele estivera procurando. Isto deu-lhe uma direção para a compreensão básica de seu mundo interior.

Kathleen Ferrick Rosenblatt é doutora em homeopatia e medicina oriental e autora da biografia de René Daumal, René Daumal: the Life and Work of a Mystic Guide.


 

TRECHO DO LIVRO

O MONTE ANÁLOGO

Romance de aventuras alpinas, não euclidianas
e simbolicamente autênticas

CAPÍTULO PRIMEIRO,
QUE É O CAPÍTULO
DO ENCONTRO

 

Novidades na vida do autor. – As montanhas simbólicas. – Um leitor sério. – Alpinismo na passagem dos Patriarcas. – Père Sogol. – Um recinto interior, e um cérebro exterior. – A arte de conhecer. – O homem que acaricia os pensamentos a contrapelo. – Confidências. – Um mosteiro satânico. – Como o diabo de plantão induz em tentação um monge engenhoso. – A engenhosa Physique. – A doença de Père Sogol. – Uma história de moscas. – Um projeto louco, reduzido a um simples problema de triangulação. – Uma lei psicológica.

 

O início de tudo o que vou contar, resumia-se a algumas poucas linhas numa escrita desconhecida sobre um envelope. Havia nesses traços de pena que desenhavam meu nome e o endereço da Revista dos Fósseis, para a qual eu colaborava e de onde me haviam enviado a carta, uma mescla alternada de violência e de doçura. Por trás das perguntas que eu me formulava sobre o emitente e o conteúdo possível da mensagem, um vago mas poderoso pressentimento evocava em mim a imagem do “estar no meio de um pântano de rãs”. E bem no fundo, emergia como uma bolha o reconhecimento de que minha vida tinha se tornado bem estagnada nesses últimos tempos. Assim, quando abri a carta, eu não saberia distinguir se ela me fazia o efeito vivificante de uma lufada de ar fresco ou de uma desagradável corrente de ar.

A mesma escrita, rápida e bem ligada, dizia de um só jato:
“Senhor, li vosso artigo sobre o Monte Análogo. Eu acreditava ser o único, até agora, a estar convencido de sua existência. Hoje, somos dois, amanhã seremos dez, mais talvez, e poderemos tentar a expedição. É necessário que entremos em contato o mais rapidamente possível. Telefone-me assim que possível num dos números abaixo. Eu vos aguardo.
                Pierre Sogol, passagem dos Patriarcas, 37 – Paris”.
(Seguiam cinco ou seis números de telefone onde eu poderia encontrá-lo em diferentes horários do dia.)
Eu já tinha quase esquecido o artigo ao qual ele se referia, e que tinha aparecido cerca de três meses antes, no número de maio da Revista dos Fósseis.

Lisonjeado por esse gesto de interesse por parte de um leitor desconhecido, eu experimentava ao mesmo tempo um certo mal-estar em ver como estava sendo levada a sério, quase tragicamente, uma fantasia literária que, na ocasião, até me havia exaltado bastante, mas que, agora, não passava de uma lembrança longínqua e fria.

Reli esse artigo. Era um estudo bastante conciso sobre o significado simbólico da montanha nas mitologias antigas. Os diferentes ramos do simbólico eram, havia muito tempo, o meu estudo favorito – eu acreditava ingenuamente compreender algo ali – e, além disso, eu amava a montanha como alpinista, apaixonadamente. O encontro desses dois tipos de interesses, tão diferentes, sobre o mesmo tema, a montanha, tinha colorido de lirismo certas passagens de meu artigo. (Tais encontros, tão incongruentes quanto possam parecer, estão para muitos na gênese daquilo que chamamos vulgarmente poesia; eu faço essa observação, como sugestão, aos críticos e aos estetas que se esforçam para iluminar as entranhas desse misterioso tipo de linguagem.)
Na tradição da fabulação, eu tinha escrito essencialmente que a Montanha é o elo entre a Terra e o Céu. Seu pico toca o mundo da eternidade, e sua base se ramifica em contrafortes múltiplos no mundo dos mortais. Ela é o caminho pelo qual o homem pode elevar-se à divindade, e a divindade revelar-se ao homem. Os patriarcas e os profetas do Antigo Testamento viam o Senhor face a face em lugares elevados. É o Sinai e é o Nebo de Moisés, e são, no Novo Testamento, o Monte das Oliveiras e o Gólgota. Eu tinha ido até buscar esse antigo símbolo da montanha nas sábias construções piramidais do Egito e da Caldéia. Passando pelos arianos, eu lembrara essas obscuras lendas dos vedas, em que o soma, o “licor” que é a “semente da imortalidade”, diz-se que reside, em sua forma luminosa e sutil, “na montanha”. Na Índia, o Himalaia é a residência de Shiva, de sua esposa “Filha da Montanha”, e das “Mães” dos mundos – da mesma forma que na Grécia o rei dos deuses tinha sua corte no Olimpo. Na mitologia grega, justamente, eu encontrara o símbolo completado pela história da revolta dos filhos da Terra que, com suas naturezas e meios terrestres, tentaram escalar o Olimpo e penetrar no Céu com seus pés argilosos; não deixava isso de ser o mesmo empreendimento que perseguiam os construtores da torre de Babel, que, sem renunciar às suas ambições múltiplas e pessoais, pretendiam atingir o reino do Único impessoal? Na China, tratava-se das “Montanhas dos Bem-aventurados”, e os antigos sábios instruíam seus discípulos à beira de um precipício...

Após ter assim feito um giro pelas mitologias mais conhecidas, eu passava a fazer considerações gerais sobre os símbolos, que eu alinhava em duas classes: aqueles que são submetidos somente às regras das “proporções”, e aqueles que são submetidos, também, às regras da “escala”. Essa distinção foi feita repetidas vezes. Só lembrando-a: a “proporção” concerne às relações entre as dimensões de um monumento; a “escala, às relações entre essas dimensões e aquelas do corpo humano. Um triângulo eqüilátero, símbolo da Trindade, tem exatamente o mesmo valor qualquer que seja sua dimensão; ele não tem a “escala”. Por outro lado, tomem uma catedral, façam dela uma redução exata de alguns decímetros de altura; esse objeto transmitirá sempre, por sua figura e por suas proporções, o sentido intelectual do monumento, mesmo se for necessário examinar com uma lupa certos detalhes; mas ele não produzirá mais a mesma emoção, nem provocará mais as mesmas atitudes; ele não estará mais na “escala”. E aquilo que define a escala da montanha simbólica por excelência – aquela que eu propunha chamar o Monte Análogo – é a sua inacessibilidade pelos meios humanos ordinários. Ora, o Sinai, Nebo e mesmo o Olimpo tornaram-se com o tempo aquilo que os alpinistas chamam “montanhas de pastoreio”; e mesmo os mais altos picos do Himalaia não são hoje mais vistos como inacessíveis. Todos esses picos perderam, portanto, seu poder analógico. O símbolo precisou refugiar-se em montanhas míticas, como o Merou dos hindus. Mas o Merou – para utilizar esse único exemplo –, se ele não está mais situado geograficamente, não pode mais conservar seu sentido impressionante de caminho que une a Terra ao Céu; ele pode ainda significar o centro ou o eixo de nosso sistema planetário, mas não mais o meio para o homem asceder.

“Para que uma montanha possa representar o papel de Monte Análogo, eu concluía, é necessário que seu pico seja inacessível, mas a base acessível aos seres humanos, tais como a natureza os fez. Ela deve ser única e deve existir geograficamente. A porta do invisível deve ser visível.”
Eis o que eu tinha escrito. Parecia, com efeito, a partir do meu artigo, tomado ao pé da letra, que eu acreditava na existência, em algum lugar na superfície do globo, de uma montanha muito mais alta que o monte Everest, o que era, do ponto de vista de uma pessoa dita sensata, um absurdo. E eis que alguém me toma ao pé da letra. E me fala de tentar “uma expedição”! Um louco? Um vigarista?... Mas e eu! Perguntei-me de repente, eu que escrevi esse artigo, será que meus leitores não teriam o direito de me colocar a mesma pergunta? Então, serei um louco ou um vigarista? Ou simplesmente um bom escritor? – Bem, eu posso confessar agora, mesmo ao colocar-me essas perguntas pouco agradáveis, que eu sentia, bem no fundo de mim mesmo, apesar de tudo, que alguma coisa acreditava firmemente na realidade material do Monte Análogo.
Na manhã seguinte, chamei um dos números de telefone indicados na carta. Uma voz feminina, mecânica e decidida informou logo que tratava-se dos “Laboratórios Eurhyne” e me perguntava com quem eu desejava falar. Após alguns cliques, uma voz de homem veio ao meu encontro:
­ “Ah! É o senhor? Sorte que os odores não são transmitidos pelo telefone! Estaria livre no domingo?... Então venha a minha casa pelas onze horas; faremos um pequeno passeio em meu parque antes de almoçar... O quê? Sim, certamente, passagem dos Patriarcas, e então?... Ah! O parque? É meu laboratório; eu pensei que o senhor era alpinista... Sim? Então! Estamos entendidos, não é?... Até domingo!

Portanto, esse não era um louco. Um louco não teria uma posição importante numa fábrica de perfumes. Então, um vigarista? Essa voz quente e decidida não era aquela de um vigarista.
Era uma quinta-feira. Três dias de espera, durante os quais as pessoas ao meu redor me encontraram bem distraído.

Nessa manhã de domingo, esbarrando em tomates, escorregando sobre cascas de banana, roçando comadres suadas, eu abri caminho até  a passagem dos Patriarcas. Passei por um átrio, perscrutei os corredores, e me dirigi na direção de uma porta no fundo do pátio. Antes de entrar, observei, ao longo de uma muralha decrépita e bojuda, a meia altura, uma corda dupla que pendia de uma pequena janela do quinto andar. Uma calça de veludo – por quanto eu conseguisse perceber tais detalhes a essa distância – saía pela janela; ela mergulhava numas meias que se ajustavam dentro de uns sapatos macios. O personagem que surgia assim, visto de baixo, segurando-se com uma mão no beiral da janela, fez passar as duas partes da corda por entre as pernas, em seguida ao redor de sua coxa direita, depois obliquamente sobre seu peito até o ombro esquerdo, então por trás da gola levantada de seu casaco curto e finalmente diante do peito por cima do ombro direito, tudo isso com um giro de mão; segurando o lado das cordas que pendiam com a mão direita e o lado das cordas superiores com a mão esquerda, empurrando o muro com os pés, o tronco ereto, as pernas afastadas, ele desceu à velocidade de um metro e meio por segundo, naquele estilo que fica tão bem nas fotografias. Ele tinha apenas tocado o chão quando uma segunda silhueta se esgueirou pelo mesmo caminho; mas esse novo personagem, chegando ao lugar onde a velha muralha se estufava, recebeu na cabeça alguma coisa como uma batata velha, que foi cair no meio da calçada, enquanto uma voz do alto gritava: “Para que se habituem às quedas de pedras!”; ele chegou em baixo sem estar muito desconcentrado, mas não terminou seu “rappel de cordas” pelo gesto que justifica esse nome e que consiste em puxar uma das cordas para recolher o cabo. Os dois homens se afastaram e atravessaram o átrio sob o olhar da encarregada da portaria que acompanhou a passagem deles com um olhar desgostoso. Eu prossegui meu caminho, subi quatro andares de uma escada de serviço e encontrei estas indicações numa placa perto de uma janela:
“Pierre Sogol, professor de alpinismo. Lições às quintas e domingos das 7 h às 11 h. Meio de acesso: sair pela janela, tomar pela fenda à esquerda, escalar a chaminé, recuperar-se sobre o remate, subir a rampa de xisto desagregado, acompanhar a borda de norte a sul contornando várias pontas rochosas e entrar pela água-furtada da face leste.”

Eu cedi com prazer a essas fantasias, apesar de que a escada continuava até o quinto andar. A “fenda” era uma estreita borda da muralha, a “chaminé” um obscuro vão encravado que só estava aguardando ser consertado pela construção de um imóvel contíguo para ser chamado de “pátio”, a “rampa de xisto” um velho telhado de ardósia e as “pontas rochosas” velhas chaminés com cobertura. Eu me introduzi pela água-furtada e me encontrei diante do homem. Grande, magro e vigoroso, um forte bigode negro, cabelos um pouco crespos, ele tinha a tranqüilidade de uma pantera enjaulada que aguarda a sua hora; ele me observava por meio de seus calmos olhos escuros e me estendia a mão.

“O senhor vê o que eu devo fazer para ganhar meu sustento”, disse ele. “Eu teria preferido recebê-lo melhor...”

“Eu imaginei que o senhor trabalhasse na perfumaria, eu o interrompi.”

“Não somente. Eu também me ocupo com uma fábrica de eletrodomésticos, uma loja de equipamentos de camping, um laboratório de produtos inseticidas e uma empresa de fotogravura. Envolvo-me em qualquer lugar para desenvolver invenções consideradas impossíveis. Até agora, isso deu certo, mas como sabem que eu não posso fazer nada na vida a não ser inventar coisas absurdas, não me pagam grande coisa. Então, dou aulas de escalada para jovens de boas famílias cansados de jogar bridge e de fazer palavras cruzadas. Ponha-se à vontade e conheça minha água-furtada.”

Tratava-se de fato de várias águas-furtadas onde tinham sido derrubadas as paredes e que formavam assim um longo ateliê com o pé direito baixo mas iluminado e arejado numa extremidade por uma grande janela. Sob a janela amontoava-se o material comum a um laboratório de ciências físico-químicas, e tudo era rodeado por um caminho pedregoso imitando um caminho de cabras, ladeado por arbustos e moitas em vasos ou caixas, plantas carnosas, pequenas coníferas, palmeiras-anãs, rododendros. Ao longo do caminho, colados aos vidros, ou apoiados nos arbustos, ou pendurados no teto, de forma a que o espaço livre fosse aproveitado ao máximo, se ofereciam à vista centenas de pequenos cartazes. Cada um trazia um desenho, uma fotografia ou uma inscrição, e seu conjunto constituía uma verdadeira enciclopédia daquilo que chamamos os “conhecimentos humanos”. Um esquema de uma célula vegetal, a tabela periódica dos elementos de Mendeleiev, as chaves da escrita chinesa, um corte do coração humano, as fórmulas de transformação de Lorentz, cada planeta com suas características, a série de cavalos fósseis, os hieróglifos maias, as estatísticas econômicas e demográficas, estrofes musicais, os representantes das grandes famílias vegetais e animais, os vários tipos de cristais, a planta da grande pirâmide, um encefalograma, fórmulas lógicas, tabelas com todos os sons empregados em todas as línguas, mapas geográficos, árvores genealógicas; enfim, tudo aquilo que deveria ocupar a mente de um Pico della Mirandola do século XX.

Aqui e acolá, vasos, aquários, jaulas contendo faunas extravagantes. Mas meu anfitrião não permitiu que eu me demorasse a examinar suas holotúrias, suas lulas, suas aranhas, seus cupinzeiros, seus formigueiros, suas larvas...; ele me levou por um caminho, onde mal podíamos manter-nos de frente, e convidou-me a andar ao redor do laboratório. Graças a uma pequena corrente de ar e ao aroma das coníferas-anãs, podíamos ter a impressão de estar subindo uma trilha sinuosa numa montanha interminável.

“O senhor compreende”, dizia Pierre Sogol, “nós temos de tomar decisões tão importantes, cujas conseqüências podem ter tantas repercussões em todos os meandros de nossas vidas, a sua e a minha, que não podemos arriscar sem antes nos termos conhecido um pouco melhor. Caminhar juntos, falar, comer, calar-se juntos, eis o que podemos fazer hoje. Mais tarde, creio que teremos ocasiões de agir juntos, de sofrer juntos – e é necessário tudo isso para ‘nos conhecermos’, como se diz.”

Muito naturalmente, falamos sobre a montanha. Ele tinha percorrido todos os mais altos maciços de nosso planeta, e eu sentia que, cada um de nós na ponta de uma boa corda, teríamos podido, nesse mesmo dia, nos atirar nas mais impensadas aventuras alpinas. Depois a conversa realizou saltos, deslizes, deu meia-volta, e eu compreendi a utilização que ele tinha para com todos os cartazes de sabedoria que resplendiam diante de nós o saber do nosso século. Essas figuras e inscrições, havia uma coleção delas por sobre nossa cabeça; e nós tínhamos a impressão que “pensávamos” os mais altos pensamentos científicos e filosóficos, quando alguns desses cartazes se agrupavam de uma maneira pouco convencional e pouco nova, ao acaso – quer pelo efeito de uma lufada de vento encanado, ou simplesmente pelo fato do movimento incessante que os agitava, como o movimento browniano agita as partículas em suspensão num líquido. Aqui, todo o material estava visivelmente fora de nós; não podíamos nos confundir com ele. Era como um festão pendurado em pregos, suspendemos nossa conversa observando essas pequenas imagens, e cada um de nós viu os mecanismos da mente do outro e da sua própria com igual clareza.

Na forma de pensar desse homem, assim como em toda a sua aparência, havia uma singular mistura de maturidade vigorosa e frescor infantil. Mas, sobretudo, da mesma forma que eu percebia, a meu lado, suas pernas nervosas e infatigáveis, eu também percebia seu pensar como uma força tão sensível quanto o calor, a luz ou o vento. Essa força tinha a faculdade excepcional de ver as idéias como fatos externos, e de estabelecer novas ligações entre idéias aparentemente contrastantes por completo. Eu o escutava – eu até o via, ousaria dizer – tratar da história humana como de um problema de geometria descritiva, e logo depois, no minuto seguinte, falar das propriedades dos números como se estivesse tratando de espécies zoológicas; a fusão e a cisão das células viventes tornavam-se um caso particular do raciocínio lógico, e a linguagem derivou as suas leis da mecânica celeste.
Eu replicava com dificuldade e em pouco tempo estava completamente perdido. Ele percebia e começava então a contar fatos da sua vida passada.